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Errando te leio A experiência do contramapeamento da cidade contemporânea




Errando te leio

A experiência do contramapeamento da cidade contemporânea

Texto: Celma PAESE[1][2]

Artigo publicado na Revista Pixo! escritas urbanas n.1, v.1 outono de 2017

Este texto fala sobre contramapear uma cidade. Caminhando, o errante urbano vive a experiência da percepção do espaço percorrido, enquanto cria a sua representação subjetiva. Errando, ele vai mergulhando e sentindo a cidade como parte inseparável do seu ser, em um ritual de exploração geográfico-afetiva de entrega ao por vir. Durante a grande festa de acolhida dos processos existenciais cotidianos, vai identificando e decodificando as percepções do caminho, em um movimento contínuo de composições de linguagem, enquanto inventa pontes para as diferentes expressões observadas: permeando-as, ele as des-fragmenta. A experiência existencial que acontece pela sucessão de encontros altera a percepção temporal-espacial: os processos de desmontagem, deslocamento e desnudamento dos elementos envolvidos sugerem diferentes valores e possibilidades das conexões entre eles. Simultaneamente, essas influências vão sendo assumidas em forma de representações cartográficas subjetivas pelo cartógrafo errante, que, assim, mostra outras maneiras de acolher e coexistir com o espaço.


Palavras-chave: Contramapas; Urbanismo Contemporâneo; Cartografia Urbana; Cidade e Desconstrução

Wandering I can read you

The experience of the countermapping of the contemporary city

This text talks about the experience of countermapping a city. Walking, the urban errant lives the experience of the perception of the space traveled, while creating his subjective representation. Wandering, he plunges and feels the city as an inseparable part of his being, in a ritual of geographical-affective exploration of surrender to come. During the great celebration of everyday existential processes, he identifies and decodes the perceptions of the way, in a continuous movement of language compositions, while inventing bridges to the different expressions observed: permeating them, he unfolds them. The existential experience that happens through the succession of encounters alters the temporal-spatial perception: the processes of disassembly, displacement and denudation of the elements involved suggest different values ​​and possibilities of the connections between them. Simultaneously, these influences are assumed in the form of subjective cartographic representations by the wandering cartographer, who thus shows other ways of welcoming and coexisting with space.

Keywords: Countermaps; Contemporary Urbanism; Urban Mapping; City and Deconstruction

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 1. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017
Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 2. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 1 e 2.

Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 3. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 4. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 3 e 4.

Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Assim como era no princípio[3], quando um ser humano caminha em uma cidade, seja ela conhecida ou não, as diferentes percepções e sentimentos que brotam durante o percurso modificam culturalmente o significado do espaço percorrido e, consequentemente, o próprio espaço: o caminhar acolhe o movimento do corpo, em espírito e ideia. Quando o processo de se entregar ao movimento chega a ponto de induzir o sujeito a com-fundir-se com a espacialidade, o movimento de percepção espaço-temporal modifica-se, como se fosse uma forma de psicastenia[4]: novas referências físico-espaciais são criadas pelos encontros e pela contingência dos caminhos, que fazem o sujeito desacelerar, parar o passo. Esses eventos fazem as hierarquias rígidas dos limites serem percebidas como transições fáceis, transcendendo a experiência espaço-temporal para uma condição onde o sujeito desacelera o ritmo a ponto de dar um passo atrás na velocidade da vida, enquanto abre-se ao por vir.


O reconhecimento do espaço pede uma atenção flutuante, concentrada e aberta, como se o errante cartógrafo o estivesse percebendo, à espreita. Assim, evitam-se dois extremos: o relaxamento passivo e a rigidez controlada. Sua função é a de detectar formas e forças circulantes, como se identificando as situações em curso nas paisagens psicossociais da espacialidade. Enquanto processo complexo e individual, a atenção assume diferentes funcionamentos: seletivo ou flutuante, focado ou desfocado, concentrado ou disperso, voluntário ou involuntário, e diversas combinações, como seleção voluntária, flutuação involuntária, concentração desfocada, focalização dispersa, entre outras várias que podem surgir. Embora coexistam, as diferentes organizações e proporções distintas das variedades atencionais refletem as diferentes políticas cognitivas do errante cartógrafo. O “parar o passo” deve ser entendido como uma parada no movimento, e não como uma parada do movimento O ritmo da alternância entre a caminhada e as paradas é o que confere um ritmo ao pensamento, e a atenção desempenha um papel essencial. Esse ritmo reflete-se no registro cartográfico, comunicando no resultado como foi estabelecido. Ao parar o passo, o errante acolhe a chegada de quem traz consigo a potência da hospitalidade para o agora. As diferentes percepções e sentimentos que brotam durante os encontros “au hasard” constroem a cartografia: o olhar que tudo vê alia-se ao corpo que sente, respira e escuta, criando relações com os elementos dos lugares, em um movimento contínuo de ressignificação e nomeação, sem dentro e fora. Neste futuro do pretérito vivem os símbolos cartográficos que brotam, expressando a experiência. Os registros podem acontecer de diversas maneiras: anotados graficamente no mapa cartesiano através de texto ou sinais, filmados, fotografados, gravados ou ainda simplesmente percebidos e registrados na memória. Sabemos que o trabalho do cérebro é conectado ao corpo, que interage com o espaço através dos sentidos e o cartografa.


A consciência em relação ao momento do registro acontece quando se percebe e se constrói um sentimento de acolhimento pela espacialidade: a situação e a forma que a acolhe. Tal atitude de acolhimento se transforma na imagem que descreve esse sentimento na cartografia. Imaginar, apropriar e nomear é um ato poético. Atentar ao que a imagem quer dizer – significado ou significante – é reconhecer a poética dessa imagem. Qualquer que seja a intenção da imagem simbólica que surja, esta é sempre um agenciamento da percepção estética do coletivo observado. Quando o envolvido no processo se dá conta, a percepção subjetiva da espacialidade já o impeliu para além dos limites impostos pelo desenho cartesiano e, assim, ele passa a nomear qual a forma que expressa a situação de acolhimento do lugar observado. Nesse momento é conveniente questionar como a imagem funciona em nível de representação do acolhimento entre a situação observada e a arquitetura que o abriga, determinando assim a natureza, a intensidade e a qualidade das formas do acolhimento percebido. A qualidade plástica da imagem não importa: o que importa é o modo como a imagem representa as subjetividades e os sentimentos que introduz. Ir além do espaço representado no mapa cartesiano é desafiador. Lançar o olhar para o que não está representado muda o padrão de ver e compreender um espaço: valores preestabelecidos são desconstruídos, abrindo novas possibilidades da descoberta e contextualização das diferentes possibilidades de representação de acolhimentos. A atitude investigativa do cartógrafo errante deve buscar perguntar-se o que está acontecendo, e não investigar um objeto: o que está em jogo na construção da cartografia é o acompanhamento de um processo. Este é o momento do recalibramento do funcionamento da atenção, que nos faz retornar ao gesto de suspensão.



Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 5. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 6. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017
Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 7. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 5, 6 e 7.

Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

A revisão dos critérios de análise dos espaços da cidade pela ótica do acolhimento chama o olhar para além das aparências encontradas nas representações das cartografias convencionais: enquanto os limites dos mapas vão sendo permeados e perdendo a importância, as suas bordas dançam e convidam a reconhecer os múltiplos sentidos e experiências dos espaços e a traduzi-los em representação. Seres e potências econômicas, culturais e sociais até então ignoradas e seus afetos são iluminados e acolhidos, em um movimento de des-fragmentação. Seus Contramapas[5] nascem das construções cartográficas que envolvem uma contínua tradução do concreto ao abstrato e novamente ao concreto, buscando um ponto de encontro ou terreno comum entre diferentes linguagens e realidades espaciais, culturais e sociais. A natureza rizomática[6] dessas cartografias expressa a conexão dessas multiplicidades de natureza efêmeras, que inspiram construções das consciências de percepções, traduzidas nas representações das florescências que brotam nos seus pontos de concreção, de onde nascem as sementes de outras multiplicidades. Construções dessa natureza se originam de influências de contribuições que chegam através das conexões entre diferentes campos em diferentes dimensões de espaço e tempo: suas potências vivem em Aion, natureza de tempo que Deleuze nomeia como o lugar mais profundo do mais pleno presente, que se dobra e desdobra intensamente nos infinitos do passado e do futuro, onde Kairós vive na dobra do instante, morada da força da mudança que rompe o presente. Em Kairós, o ser se abre para a experiência que se anuncia na indefinição do final dos contornos, bordas, desvios, exceções, nas mudanças bruscas dos espaços e nos limites das figuras e da matéria, onde tudo se funde, se confunde e se desnorteia: uma borda de tempo[7]. As conexões dessas influências afloram das situações de acolhimento, que descentram as linguagens dos seus enunciados e os conectam a um agenciamento coletivo onde as diversas dimensões envolvidas crescem nas multiplicidades de natureza mutante, conectando-se em uma rede de dobras e desdobras de variações, expansões, conquistas e capturas de expressões e gestos.


Descontrolar e transpor os limites dos mapas convencionais é um gesto de acolhimento ao por vir. A espacialidade, assim, é redimensionada para a chegada do ignorado e do desconhecido. A descoberta e a com-textualização cartográfica assumem diferentes possibilidades espacial-temporais, enquanto o encontro com os elementos acontece explorando, devorando, expropriando, desovando, questionando e transcendendo valores. As expressões que se acolhem se des-cobrem, des-fragmentam-se. As composições de linguagem surgem favorecendo a passagem das intensidades que percorrem os corpos mergulhados na geografia dos afetos das experiências de acolhimentos, inventando pontes para a travessia de suas expressões[8]. Essas experiências acontecem quando o sujeito depara-se pela primeira vez com um mapa e posteriormente percorre o espaço representado nele, dando-se conta de que as representações dos mapas convencionais não são o suficiente para nomear um lugar: limitados às representações cartesianas ou mesmo aos nomes das ruas, monumentos e alguns locais públicos que interessam ser nomeados e reconhecidos como importantes pelo poder espetacular, os mapas ignoram as relações entre as vidas que se acolhem formando suas espacialidades, estas, sim, sua real representação. Para cartografar percebendo a espacialidade, é necessário estabelecer uma relação entre a vida cotidiana e as diversas expressões sociais e culturais que definem as espacialidades de uma cidade. Os diferentes indivíduos e culturas urbanas possuem formas específicas de ler e escrever a cidade em forma de expressão. Sendo um conjunto cultural híbrido, onde as trocas entre as culturas fazem parte da dimensão cotidiana, as diferentes leituras de tais práticas se proliferam e se diversificam.

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 8. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 9. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017
Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 10. Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017

Errando e lendo o Bom Fim: movimentos 8, 9 e 10.

Fonte: Celma Paese, Infogravuras, 2017



Rocha (2012) considera que o importante em um processo cartográfico subjetivo é identificar e agenciar as relações entre o que é vitalizante-ou-destrutivo e o ativo-ou-reativo[9]. Cartografias urbanas não convencionais, como a proposta, buscam a expressão dos diferentes cotidianos que não estão ainda pasteurizados pela felicidade vendida nos shoppings. A verdadeira realização dos desejos humanos é encontrada nas vivências e trocas que acontecem nos encontros que se sucedem durante a errância “porentre” esses diferentes “mundos” urbanos. Todas as entradas são válidas, desde que as saídas sejam múltiplas. Nessa construção rizomática, o cartógrafo serve-se de fontes para seus operadores conceituais que vão além do falso-ou-verdadeiro, ou do teórico-ou-empírico: podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa, de um passeio no parque ou da leitura de um tratado de filosofia. Em uma paisagem psicossocial, essas qualidades são percebidas quando o cartógrafo se mimetiza com os processos dos territórios existenciais que constituem essas realidades. Ele não teme movimentos, entregando-se à percepção das vibrações que vivem nas diferentes frequências, inventando posições a partir das quais essas vibrações encontrem ecos, caminhos e canais de passagem para a sua manifestação.


Errando, ele vai lendo e escrevendo a cidade enquanto abre-se à subjetividade de cada segmento de espaço capaz de acolher: vive a experiência do contramapeamento nos territórios atravessados, nos desvios e deformidades das sobreposições de “mundos” de diferentes sociedades, discretas, explícitas, secretas ou não. Coexiste sem pudor com grupos enquadrados na ilusão do espetáculo, com sujeitos pós-modernos e descentrados, com aqueles que portam múltiplas identidades dentro de seu ser e com os impossíveis de serem identificados em plenitude. Vive a mutação constante de identidades, que, quando capturadas nos contramapas, já estão transformadas no mais efêmero objeto de desejo. Durante o movimento, o seu olhar é atento e cuidadoso, em busca do espaço que sacie sua fome de acolhida. Ele não tem pressa: em Aion, o olhar curioso do errante urbano se serve do caminho-tempo da alteridade, que o harmoniza com o lugar do agora: está no mais pleno presente, aquele que compreende em plenitude o infinito do futuro e do passado, espalha-se ilimitadamente na territorialidade. Essa atitude o deixa estar na terra do outro, em busca das territorializações do por vir: esses mundos podem ser duradouros ou efêmeros. As construções das representações que os traduzem nascem do acolhimento de suas naturezas. Os desvios do olhar convidam ao jogo da descoberta da cidade mutante, onde o rizoma da coexistência da diversidade surpreende. Quem mergulha no líquido amniótico desses universos se depara com as surpresas guardadas no acolhimento ignorado, entidade que vive nos espaços ainda inexplorados e descontextualizados dos caminhos da cidade, impossíveis de serem representados em cartografias convencionais. Quando as potências ocultas de acolhimento desses espaços afloram, é possível reconhecer as representações que nascem da força da influência do sistema de contingências acionado durante as errâncias cartográficas. Esses eventos aleatórios não necessários e não previsíveis acontecem na realidade reduzida dos encontros imprevistos nos lugares explorados. Podem ser felizes ou terríveis, bem antes da felicidade, bem antes do infortúnio. A ação do cartógrafo-errante serve como instrumento de percepção, comunicação, reconhecimento e troca entre essas contingências e as redes de processos culturais inseridos nas paisagens psicossociais dos encontros. Elas vivem nas ambiências criadas por eventos e vivências em arquiteturas e espaços aparentemente abandonados, nas periferias de cidades, parques e praças, ruas, becos, avenidas e todo espaço de uso público, re-conhecido ou não, onde convivem seres e entes.


O papel daquele que se propõe a ler essas subjetividades é o de dar língua e escuta para os afetos e desejos que pedem passagem. Espera-se dele que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias para expressar seus acolhimentos. Estes podem estar presentes em qualquer fenômeno da existência humana que o cartógrafo se proponha a representar. Vivem nos movimentos sociais, formalizados ou não, nas mutações da sensibilidade coletiva, na violência, na delinquência, na transgressão. Sendo assim, são partes vivas das paisagens que os abraçam. Para percebê-los, o cartógrafo precisa estar aberto para acolher e absorver matérias de qualquer procedência: não deve ter o menor preconceito de frequência, linguagem ou estilo. Tudo que der língua para os movimentos do desejo, tudo que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido para ele é bem-vindo. Como já foi dito no início deste texto, a experiência da errância é uma experiência existencial contínua, que faz o corpo ser inseparável do espaço que está sendo percorrido, assim como a percepção daquele espaço não se desvincula da identidade pessoal do observador: enquanto se entrega ao por vir, percebe e participa dos processos existenciais da vida cotidiana, das diversas expressões sociais e culturais e das formas específicas dos indivíduos viverem a cidade no espaço acolhido, suas diferenças e a différance, ele identifica e decodifica as percepções que chegam. Nesse tempo, as representações cartográficas começam a nascer através do registro de símbolos que reconhecem e nomeiam os acolhimentos relacionados com esses eventos, registrando as influências da espacialidade na percepção do cartógrafo: esta é a Cartografia Influencial, que vai além da proposta pelos situacionistas, por ir além do espaço já conhecido: propõe reconhecer e acolher as influências do espaço do por vir.


Reconhecer é acolher. Acolhendo outras possibilidades de coexistência urbana, as chances de hospitalidade entre diferentes potencializam-se em força e verdade. Para reconhecer a différance, seu lugar no mundo, sobreposições e conexões, é necessário explorar, viver, acolher e registrar em quais espaços e como seu movimento acontece. Se a finalidade da teoria da arquitetura é chamar ao despertar da consciência reflexiva que o arquiteto tem de suas práticas, então é preciso refletir sobre os modos atuais de experiência urbana, onde diariamente as potências do por vir do cotidiano transgridem e ressignificam os usos espaciais propostos. A différance envolvida na construção das redes das paisagens psicossociais contemporâneas cria situações de encontros que carregam consigo a potência de desconstruir qualquer ordem espacial imposta: toda tentativa de controle, limite e homogeneização desses mundos não enquadrados nos universos convencionais confronta-se com as profanações de suas intenções. Na conferência La Différance[10], pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de janeiro de 1968, Derrida realizou uma análise semântica da différance: “Falarei, pois, de uma letra” (DERRIDA, 1968). O autor propõe o uso do termo différance escrito com a no lugar de e, formado a partir do particípio presente do verbo différer (diferir). A diferença entre as escritas é puramente gráfica: se escreve ou se lê, porém não se ouve. Para Derrida, a différance não é uma palavra nem um conceito. Pode possuir, entre outros significados, o de não ser idêntico, distinto, ser outro, discernível. Essa diferença, no sentido de diferir, é tratada como questão de alteridade, de dessemelhança, de antipatia e de polêmica. A différance produz-se entre os elementos de forma ativa, dinamicamente, como um jogo de sentidos que só existe em uma rede de rastros. Solis (2009) chama atenção para a distinção desse operador da desconstrução em relação ao pensamento da presença e à lógica da identidade, que representa o retorno a uma origem simples, transcendente ou sensorial, que se estabelece pela presença: a différance seria, portanto, o rastro concebido em sua pureza de veículo de expressão da diferencialidade[11]. Resgatar o sentido de coexistência na urbe é reconhecer essa complexidade. Se a différance é a expressão da diferencialidade, cartografar a différance é reconhecer as pessoas em suas diferenças enquanto diferenças e em suas formas de viver e compreender o universo da cidade. Identificar o real potencial de acolhimento de determinados espaços é facilitar o acolhimento e a convivência entre essas “diferentes cidades” em todas as dimensões possíveis, em suas rupturas e estruturas.


Ampliando o foco da acolhida da cidade do conhecido para o até então ignorado, a cultura do diferente é reconhecida: o diferente, o outro que surpreende e transgride a ordem convencional é acolhido. Portanto, a viabilização de cartografias que propõem outras visões da cidade abre diferentes caminhos de permeabilidade entre dimensões sociais. Os borrões tornam-se mais nítidos, debilitando bordas e barreiras impostas pelo poder do capital. Contramapear é não pretender controlar e, sim, buscar perceber, reconhecer e comunicar diferenças, transgredir e rever pré-conceitos, quebrar paradigmas de limites espaciais, des-fragmentando. No momento em que um Contramapa é utilizado para qualquer tipo de controle e fragmentação espacial, já é um mapa. Representando as formas de acolhimento em sua verdadeira potência nas tramas urbanas, é possível reconhecer o potencial real das arquiteturas da cidade, como receptáculos de hospitalidade, amizade e acolhimento: a verdadeira realização dos desejos humanos vive na potência contida nos sucessivos encontros dos caminhos que conectam os diferentes seres e seus mundos.

Celma Paese, Porto Alegre, 2017

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. : Capitalismo e esquizofrenia (volume 1). São Paulo: Editora 34, 1997.

DERRIDA, Jacques. (1968), Disponível em: <http://www.amsafe.org.ar/formacion/images/2013-CursoDirectores/Eje4/Jacques%20Derrida%20-%20La%20Diferencia.pdf>. Acesso em: 21 set. 2016.

FUÃO, Fernando: : a ideia de em Antonio Negri. Disponível em: <http://fernandofuao.blogspot.com.br/2012/10/as-bordas-do-tempo-ideia-de-collage-em.html>. Acesso em: 25 fev. 2016.

OLALQUIAGA, Celeste. São Paulo: Ed. Studio Nobel, 1998.

PAESE, Celma. Contramapas de Acolhimento. 330 p. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/151123>. Acesso em: 27 fev. 2017.

SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. uma abordagem a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UAPE, 2009.

[1] https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pixo/article/view/11135

[2] Doutora pelo PROPAR-UFRGS. Atualmente é Bolsista PNPD CAPES no Centro Universitário Ritter dos Reis - UNIRITTER

[3] “É na sucessão de encontros durante a errância urbana que o sujeito acolhe o por vir: desta maneira, vai renovando os significados dos espaços nos caminhos, os transformando em espacialidades. No decorrer da história, o caminhar sempre estabeleceu as bases das relações humanas com o espaço: apesar de não o construir, o ressignificou. Os encontros entre os bandos de errantes nos caminhos primitivos agenciaram as primeiras relações entre bandos, enquanto o espaço era ressignificado de maneira simbólica pelas primeiras trilhas: a arquitetura de paisagem e as primeiras cartografias são heranças destes tempos.”

PAESE, Celma. Contramapas de Acolhimento. 330 p. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2016, p. 20. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/151123>. Acesso em: 27 fev. 2017.

[4] “Voltando à figura da pisicastenia, pode-se argumentar que esse estado, em vez de ser a incapacidade de um organismo de distinguir-se de seu meio ambiente, pode ser interpretado como a habilidade do organismo em fundir-se com este meio ambiente. Assim definida, a psicastenia substituiria as hierarquias rígidas por transições fáceis, representando uma condição cultural totalmente nova”

OLALQUIAGA, Celeste. Megalópolis: sensibilidades culturais contemporâneas. São Paulo: Ed. Studio Nobel, 1998, p.27.

[5] Ver: PAESE, Celma. Contramapas de Acolhimento. 330 p. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2016, p. 20. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/151123>. Acesso em: 27 fev. 2017.

[6] “Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; a toca, neste sentido, é um rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção entre linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação (cf. por exemplo, a lontra). Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida “competência”. Ao contrário da psicanálise, da competência psicanalítica, que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanálise recusa toda idéia de fatalidade decalcada, seja qual for o nome que se lhe dê, divina, anagógica, histórica, econômica, estrutural, hereditária ou sintagmática. (...) As pulsões e objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu desejo.”

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia (volume 1). São Paulo: Editora 34, 1997, p. 30-31.

[7] FUÃO, Fernando: As Bordas do Tempo: a ideia de collage em Antonio Negri. Disponível em: <http://fernandofuao.blogspot.com.br/2012/10/as-bordas-do-tempo-ideia-de-collage-em.html>. Acesso em: 25 fev. 2016.

[8] ROCHA, Eduardo. Cartografias Urbanas: método de exploração das cidades na contemporaneidade. In: TESTAMANTI, Juan Manuel Diez; ESCUDERO, Beatriz (Org.). Cartografia Social: investigaciones e intervención desde las ciências sociales: métodos y experiências de aplicación. Comodoro Rivadavia: Universitaria de La Patagonia, 2012, p. 118-119.

[9] ROCHA, Eduardo. Cartografias Urbanas: método de exploração das cidades na contemporaneidade. In: TESTAMANTI, Juan Manuel Diez; ESCUDERO, Beatriz (Org.). Cartografia Social: investigaciones e intervención desde las ciências sociales: métodos y experiências de aplicación. Comodoro Rivadavia: Universitaria de La Patagonia, 2012, p. 120, 130-131.

[10] DERRIDA, Jacques. La Diferencia/ [Différance] (1968), p. 1. Disponível em: <http://www.amsafe.org.ar/formacion/images/2013-CursoDirectores/Eje4/Jacques%20Derrida%20-%20La%20Diferencia.pdf>. Acesso em: 21 set. 2016

[11] SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. Desconstrução e arquitetura: uma abordagem a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UAPE, 2009, p. 32.

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